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Para Ministério Público de SP, novo Código Florestal é injusto e caótico

Em entrevista concedida à Revista Época (Blog do Planeta), a Procuradora de Justiça, Lídia Helena Ferreira da Costa dos Passos, coordenadora do Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva do Ministério Público do Estado de São Paulo, faz críticas ao novo Código Florestal. Segundo ela, o novo Código abre brechas para devastação e anistia quem burlou a lei no passado. Lídia coordena o Projeto Florestar, uma iniciativa do MPSP para padronizar a atuação dos promotores do estado. Ela respondeu as perguntas de Época sobre o Código.

Época: Como a senhora vê o novo Código Florestal? Seria mais claro e menos ambíguo do que as leis e decretos federais anteriores?

Lídia Passos: Eu não chamaria assim a nova lei florestal. A lei produzida – ao longo de um desgastante e excepcionalmente conturbado processo legislativo – não constitui propriamente um “código florestal”. O conceito de “código florestal” remeteria a um conjunto sistemático de disposições legais relativas à proteção das florestas e da (riquíssima) biodiversidade no Brasil…e a ideia de “novo”, nesse caso, apontaria para uma esperada evolução em relação à lei anterior (de 1965). Esse conceito normativo que envolve método científico, transparência de interesses e consistência sistêmica de forma alguma se aplica ao arranjo de disposições legais que os legisladores afinal entregaram ao país. Podemos tranquilamente reconhecer que a lei 12.651/12 (chamada de novo Código Florestal) nos remete mais à ideia de um “arranjo normativo” do que a um autêntico código florestal, conforme inicialmente se esperava. Daí a frustração e a polêmica que caracterizam os debates sobre a legitimidade da nova lei, que já nasceu velha. Representou, sem dúvida, retrocesso.

Época: Por que?

Lídia: Em primeiro lugar, porque não se conhece com clareza as bases científicas que sustentariam a legitimidade e eficácia das disposições legais produzidas. As mais reconhecidas referências científicas do país, como a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e ABC (Academia Brasileira de Ciência), que concentram renomados pesquisadores brasileiros, criticaram de forma específica e contundente o disparatado desvirtuamento de conceitos científicos fundamentais que aparecem de forma imprópria ou distorcida nessa legislação.

Época: A senhora pode dar exemplos?

Lídia: Os conceitos de Área de Preservação Permanente (APP) e de Reserva Legal foram severamente distorcidos na atual legislação. São usados em contextos que facilitam o prejuízo em escala de processos ecológicos essenciais para o equilíbrio ambiental. Modalidades extremamente importantes de APPs – que envolvem reservatórios artificiais, restingas, bordas de tabuleiro ou chapadas, encostas com declividade superior a 45 graus, topos de morro, áreas em altitude superior a 1.800 m – foram inexplicavelmente excluídas das condições especiais de preservação contempladas na lei atual. Não há qualquer base científica reconhecida que autorize essa modificação conceitual da lei em função dos objetivos ambientais que presumivelmente a informam. Ou seja: os conceitos científicos são subvertidos porque são usados em contextos que precisamente invertem o sentido de preservação das funções ambientais que a lei florestal visa garantir.

Época: Quem ganhou com o novo Código?

Lídia: Não se reconhece com transparência os reais interesses que prevaleceram na lei afinal produzida. A lei promove anistias injustificadas e inova para permitir relevantes (e nocivas) possibilidades de intervenção em áreas de preservação permanente e reserva legal, que geram impactos de risco não apenas para as florestas, como também para os recursos hídricos, entre outros. Como se sabe, são recursos básicos da sustentabilidade produtiva do país e fundamentais para manter padrões saudáveis da qualidade de vida. De outro lado, não estão explícitas eventuais razões pelas quais a lei produzida representaria uma evolução para as populações tradicionais, para a agricultura familiar. Aliás, muito pelo contrário, setores importantes da comunidade civil organizada denunciam o injustificado retrocesso legislativo em relação a direitos sociais fundamentais. Por exemplo: não há colaboração significativa na nova lei para fortalecer de forma ambientalmente sustentável o pequeno produtor rural familiar. Esse prejuízo dos interesses mais basilares do pequeno produtor familiar ocorre porque as inovações da lei não foram definidas de modo a garantir a promoção de políticas agrícolas mais distributivas, alterando a lógica ainda prevalecente de desigualdade de oportunidades no campo entre os setores corporativos do agronegócio (grandes monoculturas e comodities agrícolas, que sem dúvida prevalecem no contexto econômico brasileiro) e pequenos produtores familiares (minoria).

Época: Qual é a lógica do novo Código?

Lídia: Após tantos embates e reviravoltas, não é possível reconhecer consistência sistêmica na confusa, discriminatória e permissiva legislação produzida. Por exemplo: houve alteração significativa e injustificada do conceito e dimensões da pequena propriedade ou posse rural familiar. A legislação anterior definia um tamanho de até 30 hectares para a pequena propriedade rural no Estado de São Paulo. As condições atuais de enquadramento são bem mais complexas e confusas. Foram, na prática, flexibilizadas para redimensionar a medida das “pequenas propriedades” em até 4 módulos fiscais definidos por outra legislação (a Instrucao Normativa do Incra, de 2006, que varia de município a município), agregando-se ainda a figura do empreendedor (pessoa jurídica). Essa flexibilização disparatada causa insegurança e confusão em situações há muitas décadas pacificamente definidas, pois os módulos fiscais variam amplamente (entre cerca de 10 hectares até cerca de 100 hectares!). Outro exemplo, ainda no mesmo artigo dessa lei: o conceito de “área rural consolidada” relativo a área de imóvel rural com ocupação humana preexistente a 22 de julho de 2008 foi flexibilizado de forma discriminatória, pois promove anistia generalizada de passivos ambientais anteriores a essa data.

Época: O novo Código não ficou mais objetivo que as leis anteriores?

Lídia: Diante da lei que acabou sendo produzida, vivemos situação caótica e insegura, com excesso de disposições dependentes da edição de decretos, resoluções e outros atos administrativos, cuja competência não foi estabelecida. Somando-se a esse quadro a ausência de transparência a respeito do embasamento científico que apoiou alterações das normas de proteção das Áreas de Proteção Permanente e Reserva Legal, além de distorções conceituais, podemos prever longo e conflituoso período de incerteza e insegurança jurídica, com prejuízos evidentes para os investimentos nos setores econômicos interessados. Sob tal enfoque, por sinal, é significativa a atual disputa a propósito dos necessários vetos presidenciais e da medida provisória em substituição aos dispositivos vetados.

Época: As regras do novo Código facilitam a adequação do produtor rural?

Lídia: Depende do que você designa como “adequação”. Se você se refere às anistias oferecidas, ou seja, a desoneração indiscriminada de passivos ambientais decorrentes de degradações consumadas em face da lei anterior, a resposta é positiva. Setores importantes da produção agrícola foram privilegiados por essa desoneração operada com a nova lei. Mas é preciso considerar o alerta dos cientistas no sentido de que essa opção não contemplou o alto custo dos investimentos necessários para manter padrões adequados de produtividade em propriedades que, embora atendam requisitos formais da lei, sofrerão com mais intensidade os efeitos altamente prejudiciais da exclusão de proteção de elementos fundamentais da reprodução natural dos recursos ecológicos, como por exemplo as nascentes intermitentes. Em Brasília e toda a região do Planalto Central isso será um problema especialmente preocupante, pois exercem fundamental papel de recarga de seis das oito mais importantes bacias hidrográficas do Brasil. Não se pode desconsiderar esse custo – que tem faces ambientais, sociais e econômicas – para avaliar as relações entre custos e benefícios gerados na perspectiva que você indica.

Época: Com o novo Código, será possível exercer uma fiscalização mais eficiente? A senhora acredita que haverá mais autuações com a nova lei?

Lídia: As perspectivas não parecem nada boas. As condições de fiscalização foram prejudicadas. Há dificuldades novas criadas pela nova lei e, por consequência, as previsões apontam para uma diminuição de autuações que viabilizariam a exigência de recomposição de áreas ambientalmente degradadas. Além das dificuldades operacionais e de interpretação dos dispositivos da lei editada, não se pode deixar de mencionar a alteração das condições de fiscalização e autuações decorrentes da edição da lei complementar que regulamentou a repartição de competências de licenciamento e fiscalização ambiental entre municípios, estados e União. Esse é um aspecto político muito delicado e preocupante. De um lado, porque os municípios foram onerados com deveres e obrigações decorrentes da competência para licenciamento e para a fiscalização de atividades degradadoras, sem previsão de fontes de financiamento dessas novas responsabilidades. De modo geral os municípios brasileiros não estão estruturalmente preparados para o licenciamento ambiental. Nem para a fiscalização. Será preciso investir e capacitar pessoal para isso. Essa é também a realidade geral do Estado de São Paulo. Há ainda um outro aspecto para relevar sob esse ponto de vista. A fiscalização não é o início, mas o final do processo de controle público das condições ambientais da produção econômica. Cabe ao próprio degradador e ao potencial degradador o ônus de se autodeclarar conforme ou desconforme a lei. Mas não há acesso universal e sequer uma sistematização pública das informações necessárias para ancorar a posição assumida pelos degradadores potenciais ou não. Como exemplo dessa dificuldade, podemos destacar a adoção da calha regular como referencial para a medição de APPs de cursos d’água, bem como algumas distinções de proteção envolvendo a perenidade, intermitência e efemeridade dos rios. Sem mencionar a temerária omissão de proteção das nascentes não perenes, fundamentais nas regiões menos úmidas. Os olhos d’água são prioridade importantíssima de proteção.

Época: O novo Código é mais justo?

Lídia: Definitivamente, não. Há uma tendência a privilegiar quem promoveu degradação irregular em detrimento de quem preservou. Um exemplo claro está na dispensa de reserva legal para as pequenas propriedades rurais (que podem chegar, na Amazônia, a cerca de 400 hectares, equivalente a 4 milhões de metros quadrados). Nessas propriedades, quem tinha remanescentes florestais em 22 de julho de 2008 deve cadastrá-los como reserva legal. Mas não há exigência para quem desmatou tudo. Outro exemplo: o estabelecimento de faixas diferenciadas de recuperação de florestas em APPs de margem de rios em função do tamanho da propriedade. Trata-se de uma diretriz completamente desprovida de base científica que, na prática, vai dificultar ou impedir que tais áreas – que são muito importantes – cumpram efetivamente suas funções ecológicas. Por sinal, nesse contexto foram estabelecidas grandes injustiças na nova lei a começar contra aqueles que cumpriram a lei anterior. Também contra os pequenos produtores que não terão condições de se sustentar em pouco espaço de tempo – seja pela diminuição da produtividade seja pela falta de apoio financeiro.

Época: O novo Código é mais ou menos permissivo do que a legislação federal em vigor até então?

Lídia: Sem dúvida, mais permissivo. Com a nova lei é possível a intervenção em APPs de rios e reservatórios artificiais de águas em dezenas de situações que pela lei anterior não era possível como, por exemplo, implantação de ruas de loteamento e aterros sanitários e locais para reciclagem de resíduos sólidos, a construção de quadras esportivas, locais de atividades de lazer e até mesmo espaços para shows ao vivo. A proteção da vegetação de morros e montanhas também está muito menos rigorosa que na lei anterior. Hoje é possível o plantio de eucaliptos e pinus em áreas destinas à proteção das encostas contra deslizamentos e à proteção de nascentes d’águas perenes e intermitentes. Como já dito anteriormente, o falso argumento da manutenção de atividades agrícolas tradicionais em morros era, na verdade, o pesado lobby do setor da silvicultura voltada à produção de celulose buscando áreas mais baratas para o plantio.

FONTE: http://www.mpsp.mp.br