Confira a entrevista com Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista e escritor
Vinícius Carvalho – redacao@revistaecologico.com.br
Ailton Krenak é uma das lideranças indígenas mais ativas do Brasil. Esteve ao lado de Chico Mendes na Aliança dos Povos da Floresta, participou da fundação da União das Nações Indígenas (UNI) e se tornou símbolo da luta pelos direitos dos povos tradicionais na Assembleia Nacional Constituinte, quando pintou o rosto de preto com pasta de jenipapo, enquanto discursava no plenário do Congresso, em sinal de luto pela lentidão na tramitação das pautas indígenas. Em entrevista concedida à ECOLÓGICO às margens do Rio Cipó,
Ailton alerta para uma crise de civilização, destaca o lugar da espiritualidade hoje e critica algumas das principais ameaças aos povos indígenas em curso no Brasil. “Estamos caminhando para um desastre comum, porque não conseguimos mais nos reconhecer uns aos outros”.
O último censo apontou a existência de 305 etnias diferentes no Brasil. Em meio a tanta diversidade, o que define o índio?
Só somos índios para os outros. Para nenhuma de nossas famílias nós somos os índios. Quando uma pessoa do meu povo quer se identificar, entre nós, ele chama o outro de burum. E se você for traduzir o burum, quer dizer “ser humano”. Então, nós nos reconhecemos como seres humanos; e, talvez, a crise de civilização que vivemos seja um grande liquidificador que vai permitir que todas estas alcunhas generalistas – os amarelos, os índios, os brancos, os pretos – se dissolvam neste caldeirão para que aprendamos, de novo, a ser a velha e ótima humanidade. Aceitar todos como irmãos – mesmo que ele não fale sua língua ou tenha hábitos diferentes dos seus – é um recurso de aproximação maravilhoso. O que acho que estes povos têm de beleza para contribuir com o arranjo da humanidade é justamente esta percepção sutil de que somos todos seres humanos. Somos coloridos, o mundo é colorido.
Qual a essência da crise?
Estamos caminhando para um desastre comum, porque não conseguimos mais nos reconhecer uns aos outros. É como se a gente estivesse em uma corrida maluca que já não tem mais a motivação da largada, mas que prossegue, porque alguém tem que chegar primeiro. Os chineses têm que chegar primeiro. Os americanos têm que chegar primeiro. Os europeus têm que chegar primeiro. Mas não estamos indo a lugar nenhum e é escandaloso o tanto de energia que capturamos da natureza para imprimir nela um significado cultural.
É um dilema espiritual também?
Muita gente tem problema com a palavra sagrado e acha que aplicar esse termo à natureza é um exagero, como se fosse uma tentativa equivocada de estender à natureza conceitos que são só da cultura. É difícil, muita gente tem vergonha do sagrado ou de demonstrar alguma sensibilidade que não tenha a ver apenas com seu umbigo. Se reproduzir e se bancar com o máximo de consumo, qualquer idiota pode fazer, mas não é qualquer idiota que consegue transcender à fissura de si mesmo e ter uma percepção de que somos mais do que animais que se reproduzem e dominam territórios. Somos capazes de ideias, percepções e sentimentos que restabelecem para nós mesmos o sentido de sagrado. E sagrado pode ser tudo aquilo em que botamos os olhos a depender dos olhos com que enxergamos o mundo. Se vemos uma montanha como toneladas de minério a serem transformadas em carros e outras bugigangas, então ela não pode ser sagrada. Se olhamos uma floresta e não conseguimos vê-la com algum significado transcendente, então ela vira só um estoque de recursos naturais. É quase o que acontece no Brasil hoje com relação à energia, todos os nossos rios estão sendo calculados em quilowatts. Então, alguém olha um rio e só pensa em quanta energia pode ser retirada dali. São verdadeiros vampiros que olham a natureza com as presas de fora.
Como nadar contra essa correnteza?
Quando você me pergunta como nadar contra a correnteza, o que eu digo é que não devemos nadar contra a correnteza. A lição da água é você acompanhar o movimento dela. Agora, acompanhar o movimento da água como uma tábua é uma coisa, e acompanhar esse movimento como um peixe vivo é outra. Há uma parábola muito bonita sobre isso que ouvi da Gurumai, continuadora de uma tradição de grandes gurus. Meses antes da tsunami na Ásia, ela sonhou que estava no mar com as amigas. Era um mar de corais, e o céu estava tão maravilhoso e azul. De repente, elas foram surpreendidas por um turbilhão que não deu a elas tempo de fugir para a praia. As amigas que sabiam surfar jogaram a prancha para cima e seguiram a onda. Ela, ao contrário, ouviu uma voz que disse: ‘Respire e mergulhe o mais fundo que puder’.
Quando finalmente retornou do fundo das águas, viu que as amigas que pegaram a primeira onda estavam esmagadas no rastro de toda aquela destruição. A lição da água não é nadar contra a corrente, é mergulhar fundo. Quem quer nadar contra a corrente é o velho homem. E mergulhar fundo significa aceitar os nossos defeitos, as nossas incapacidades. Enquanto não fizermos isso, aceitaremos que somos capazes de sermos maiores que nós mesmos.
E o que define este novo homem?
Esse homem não quer subir no pódio, não quer ser presidente da empresa, não quer ser maior do que ninguém. Ele está desconfiado de qualquer coisa que não pode ouvir ou enxergar sem binóculo. Ele quer relações transparentes, quer falar e ser ouvido, quer ser visto como um ser humano que erra, que chega atrasado, que pega gripe, que morre de câncer, que tem defeitos. Essa é a nossa possibilidade: acertar a partir de nossos próprios erros, sem ter vergonha de reconhecê-los. É não achar que meu erro precisa ser escondido e o do outro mostrado.
Gandhi já dizia: ‘comece a mudança por você mesmo’. Começar a mudança por você mesmo é ser transparente com seu pais, seus companheiros, seus erros, seus medos. Se você conseguir ser transparente com todos esses lados da sua vida, é bem possível que vá desvendar uma coisa divina na sua frente. Porque o divino é transparente.
Como ANALISA hoje o quadro indígena no Brasil?
A agulha que está fazendo do-in na cabeça dos índios é a do Iniciativa para Integração de Infraestrutura Regional Sul Americana (Irsa), que quer construir hidrelétricas em todos os rios. É a do Brasil que quer exportar 200 bilhões de toneladas de grãos, transformando o Cerrado em soja, cana-de-açúcar ou qualquer outro bagulho que o mercado queira comprar. É como se não importasse o que nós somos capazes de fazer, mas o que o mercado quer que a gente faça. E agora, no Brasil, querem tirar debaixo do pé dos índios minério, gás e petróleo. Meteram a mão no Xingu, estão construindo barragens e usinas no rio Telles Pires e em tudo quanto é curso d’água que tenha potência, sendo que potência para eles significa quilowatts. Se você fizer isso em todos os rios indígenas, você mata os índios.
Uma das coisas que os tecnocratas dizem, por exemplo, é que Belo Monte está a centenas de quilômetros do parque do Xingu, só que ele está no rio Xingu, e o rio é um organismo vivo. Se você cortar o pé de um desses tecnocratas será que ele não sente dor porque o pé está longe do coração? É de uma burrice sem fim. Isso não é governar, é desgovernar. E do Fernando Henrique Cardoso para cá, incluindo todos os governos, parece que a gente decidiu alugar o Brasil.
Ilustração artística mostra a usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará – Divulgação/Norte Energia
É momento de um presidente indígena na Funai?
O auge da política indigenista ocorreu na ditadura militar. Você tinha generais no comando da Funai. Quando o Figueiredo saiu e entrou o Sarney, continuamos ainda com os coronéis e gente do Serviço Nacional de Informação (SNI), um antro de arapongas. Daí, na virada da década de 80 para 90, começa a era dos antropólogos. Estamos há 20 anos testando a experiência dos antropólogos à frente da Funai, enquanto ela vai se mumificando. Porque é isso: a Funai está morta. Eles administrativamente a vincularam ao Ministério da Justiça, onde virou a filha feia que a família esconde no porão. Este é o lugar que o Estado brasileiro reservou para os índios. Há 10 anos, um antropólogo que iria assumir a direção da Funai me perguntou o que eu achava. Eu disse: compra uma caixa de dinamite, assina o ato de posse e implode aquela coisa. Daí, você talvez obrigue o Estado brasileiro – não uma autarquia confinada ou uma só pasta – a dialogar de verdade com os povos indígenas. Eu acredito que o ideal seria um Estado plurinacional.
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